Faltam ainda sete anos para se cumprirem cinco séculos sobre a morte do inigualável génio do Renascimento (1452-1519), mas um conjunto de acasos e circunstâncias está a fazer destes últimos meses, sem nenhuma estratégia concertada, nem nenhuma efeméride, um tempo de redescoberta da pintura do mestre do “sfumatto”.
Há de tudo: uma exposição que será irrepetível, a da National Gallery (de novembro de 2011 a fevereiro de 2012), Leonardo pintor na corte de Milão, que reuniu o número assombroso de nove pinturas de Leonardo, num esforço diplomático sem paralelo; a descoberta, no Prado, de uma “nova” Mona Lisa, pintada ao seu lado por um discípulo; uma petição internacional, que reclamou que um fresco de Giorgio Vasari no Palazzo Vecchio de Florença não fosse danificado com estudos para se determinar se por baixo estaria a famosa Batalha de Anghiari, de Leonardo, e, finalmente, acusações de que o Louvre estragou sem remédio a última obra-prima de da Vinci.
Santa Ana, a última obra-prima de Leonardo da Vinci, está em exposição no Hall Napoleão do Louvre, de 29 de março a 25 de junho, sendo o culminar desta sequência de cartadas triunfais e, de certa maneira, um ponto final justo.
Foi em França que Leonardo morreu, praticamente no colo do Rei Francisco I, e é no Louvre que se encontra a maioria das suas telas conhecidas (admite-se que tenha pintado 20, das quais só 16 têm sem dúvidas a sua impressão digital). No Louvre estão oito, incluindo aquela que é a quintessência da sua técnica e do seu enigma, Mona Lisa.
A exposição do Louvre, que está a atrair as esperadas multidões (só no primeiro fim-de-semana teve 30 mil visitantes), começou com a decisão da direção do museu de restaurar o quadro Santa Ana, a Virgem e o Menino. Em 9 de setembro de 2008, foi dado o primeiro passo deste megaprojeto que, no entanto, de acordo com Vincent Pomarède, o diretor do Departamento de Conservação do Louvre, em declarações à revista Beaux Arts, estava em banho-maria desde 2004. «Tomei consciência que um reexame completo das obras de da Vinci se impunha». Porém, só em 2008, o Centro de Pesquisa e de Restauro dos Museus de França (C2RMF), após uma bateria de exames, decide que o verniz que cobre a pintura foi danificado, a obra está em risco e o restauro é urgente.
No filme disponível em DVD Léonard de Vinci, la restauration du siècle, que é um making of que acompanha os momentos cruciais de três anos de trabalho, conta-se como durante as primeiras duas semanas, através das técnicas mais avançadas, a obra foi escrutinada milímetro a milímetro. Deste trabalho, diz-se no vídeo, «resultou a descoberta de uma pintura fantasma coberta por séculos de vernizes». E na parte de trás do quadro os especialistas encontraram três desenhos inacabados de Leonardo: uma cabeça de cavalo, uma criança e meio crânio.
A partir daqui, o restauro foi entregue a Cinzia Pasquali, uma romana com a competência técnica (já trabalhou em mais de 270 estaleiros de restauro, incluindo na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes) e também, diz-se, com a força de caráter para aguentar a pressão de pôr as mãos numa obra de Leonardo, uma tarefa técnica e psicologicamente árdua.
O projeto do Louvre foi, desde o início, acompanhado por um comité de uma vintena de especialistas internacionais em Leonardo, chamados a reunir em momentos-chave, com o objetivo de diluir a pressão de decisões importantes que haveriam de ser tomadas ao longo do caminho.
A certo ponto, uma maioria defendia uma remoção extensa dos velhos vernizes que foram dando a toda a pintura um tom castanho amarelado e que encheram de nódoas o vestido da Virgem Maria e os rostos de uma espécie de impinges. Pasquali, manifestamente deslumbrada com as descobertas que ia fazendo, de uma pintura cada vez mais leve e luminosa, próxima de uma aguarela, onde as manchas das vestes da Virgem davam lugar a um intenso azul, lutava corajosamente por “limpar” o mais possível, ou seja, recuperar o esplendor inicial da pintura.
A direção do Louvre, no meio da polémica que entretanto chegaria à imprensa internacional – com a demissão de Ségolène Bergeon Langle, uma reputadíssima conservadora francesa, e de Jean-François Cuzin, que fizeram acusações graves de o Louvre ter levianamente estragado a obra –, manteve uma posição cautelosa: limpar apenas quase tudo.
Diz Pasquali que «a polémica não prejudicou nem o meu trabalho nem a minha concentração. É muito fácil dizer: atenção, estão a estragar um Leonardo, sem apresentar provas palpáveis. O Louvre demonstrou com análises químicas que o quadro não corria nenhum risco. Que interesse teria em estragar uma das suas obras-primas? Tenho a certeza de que toda a gente se vai apaixonar por este quadro.»
A obra retrata, de forma revolucionária para a época, e numa composição imitada vezes sem conta, a Virgem Maria com o seu filho e a sua mãe, uma personagem secundarizada nos relatos bíblicos.
A exposição do Louvre exibe agora uma Santa Ana, a Virgem e o menino que é uma nova pintura: «Foi uma descoberta. Não sabia que havia tantas cascatas. Há mesmo um riacho e pequenas personagens ao fundo. Foi um momento maravilhoso», confessa Vincent Pomarède.
Martin Kemp, professor de História de Arte do Trinity College de Oxford diz que o trabalho terá sido feito com «tato e sensibilidade». E, embora reconheça exagero «na novidade das descobertas», surgidas no estaleiro, encontra alguns novos pontos de debate: «Damo-nos conta de que Leonardo fez uma surpreendente quantidade de mudanças enquanto concebia a pintura. O restauro também tornou visível que parte da pintura é tão delicada como uma aguarela».
A última obra-prima de Leonardo da Vinci, terá sido iniciada ao mesmo tempo que a Mona Lisa, no entanto Leonardo a ela voltaria durante 15 anos, tendo morrido sem lhe dar as últimas pinceladas. Por isso, o Louvre pediu ao Prado de Madrid, o empréstimo de uma réplica tardia da Mona Lisa, já que seria impensável retirar a verdadeira Gioconda da Grande Galeria. Mas num golpe de sorte, quando iniciaram uma limpeza preparatória, o que os técnicos do Prado encontraram, sob uma camada de tinta escura, que fazia de fundo, à maneira dos pintores flamengos, foi uma paisagem semelhante à da tela do Louvre.
O achado, que fez manchetes ao longo do mês de fevereiro, aponta para a grande probabilidade (dada a semelhança das hesitações e mudanças de traçado nos dois quadros irmãos) de a chamada Mona Lisa do Prado ter sido feita ao mesmo tempo que Leonardo executava a sua obra-prima e provavelmente, dizem os peritos, terminada ainda antes.
Um facto muito perturbador na longa discussão entre a autenticidade e a cópia. O aluno a quem os especialistas estão a atribuir a “réplica” é Salai, dito como um dos preferidos de da Vinci entre os seus alunos. Para Martin Kemp, no entanto, a recente descoberta do Prado está a ser sobreavaliada e supermediatizada: «Não é surpresa nenhuma que uma cópia fosse feita no ateliê». Aliás, quem for à exposição do Louvre verá que uma das temáticas centrais é a do experimentalismo obsessivo de Leonardo e a maneira como os seus discípulos executavam sucessivos ensaios exploratórios da obra do mestre.
De qualquer maneira, esta descoberta reverbera uma nova luz sobre a Mona Lisa – uma obra tão sacrossanta que será preciso certamente algo parecido com uma bula papal para ser libertada dos seus velhos vernizes. A irmã gémea, com um rosto ligeiramente diferente da de Leonardo, com um sorriso mais terreno, limpa da velha maquilhagem, mostra uma Lisa Gherardini mais jovem e palpável do que o rosto envelhecido e oxidado que está no Louvre.

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